"Cuidado com os burros motivados"/ R. Shinyashiki
A revista Isto é publicou esta excelente entrevista de Camilo Vannuchi. O
entrevistado é Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com Pós-Graduação em
administração de empresas pela USP, consultor organizacional e conferencista
de renome nacional e internacional.
"Cuidado com os burros motivados"
Em "Heróis de Verdade", o escritor combate a supervalorização da Aparência e
diz que falta ao Brasil competência, e não auto-estima.
"Observador contumaz das manias humanas, Roberto Shinyashiki está cansado
dos jogos de aparência que tomaram conta das corporações e das famílias.
Nas entrevistas de emprego, por exemplo, os candidatos repetem o que
imaginam que deve ser dito. Num teatro constante, são todos
felizes,motivados, corretos, embora muitas vezes pequem na competência.
Dizem-se perfeccionistas: ninguém comete falhas, ninguém erra. Como Álvaro
de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) em Poema em linha reta, o
psiquiatra não compartilha da síndrome de super-heróis. "Nunca conheci quem
tivesse levado porrada na vida (...) Toda a gente que eu conheço e que fala
comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho, nunca foi senão príncipe", dizem os versos que o inspiraram a
escrever "Heróis de verdade" (Editora Gente, 168 págs., R$ 25).
Farto de semideuses, Roberto Shinyashiki faz soar seu alerta por uma mudança
de atitude. "O mundo precisa de pessoas mais simples e verdadeiras". ISTO É
- Quem são os heróis de verdade?
Roberto Shinyashiki - Nossa sociedade ensina que, para ser uma pessoa de
sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter carro importado,
viajar de primeira classe. O mundo define que poucas pessoas deram certo.
Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa, há milhares de
funcionários que não chegaram a ser gerentes. E essas pessoas são tratadas
como uma multidão de fracassados. Quando olha para a própria vida, a maioria
se convence de que não valeu a pena porque não conseguiu ter o carro nem a
casa maravilhosa. Para mim, é importante que o filho da moça que trabalha na
minha casa possa se orgulhar da mãe. O mundo precisa de pessoas mais simples
e transparentes. Heróis de verdade são aqueles que trabalham para realizar
seus projetos de vida, e não para impressionar os outros. São pessoas que
sabem pedir desculpas e admitir que erraram.
ISTO É - O sr. citaria exemplos?
Shinyashiki - Dona Zilda Arns, que não vai a determinados programas de tevê
nem aparece de Cartier, mas está salvando milhões de pessoas. Quando eu
nasci, minha mãe era empregada doméstica e meu pai, órfão
aos sete anos, empregado em uma farmácia. Morávamos em um bairro miserável
em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida. Eles são meus heróis.
Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem. Acho lindo quando
o Cafu põe uma camisa em que está escrito "100% Jardim Irene". É pena que a
maior parte das pessoas esconda suas raízes. O resultado é um mundo vítima
da depressão, doença que acomete hoje 10% da população americana. Em países
como Japão, Suécia e Noruega, há mais suicídio do que homicídio.
Por que tanta gente se mata? Parte da culpa está na depressão das
aparências, que acomete a mulher que, embora não ame mais o marido,mantém o
casamento, ou o homem que passa décadas em um emprego que não o faz se
sentir realizado, mas o faz se sentir seguro.
ISTO É - Qual o resultado disso?
Shinyashiki - Paranóia e depressão cada vez mais precoces. O pai quer
preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de inglês,
informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão aparece. A única
coisa que prepara uma criança para o futuro é ela poder ser criança. Com a
desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos pais estão roubando a
infância dos filhos. Essas crianças serão adultos inseguros e terão
discursos hipócritas. Aliás, a hipocrisia já predomina no mundo corporativo.
ISTO É - Por quê?
Shinyashiki - O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta, a começar
pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito com mais marketing
pessoal. As corporações valorizam mais a auto-estima do que a competência.
Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que respondia todas
as minhas perguntas com uma ou duas palavras. Disse que ela não parecia
demonstrar interesse. Ela me respondeu estar muito interessada, mas, como
falava pouco, pediu que eu pesasse o desempenho dela, e não a conversa. Até
porque ela era candidata a um emprego na contabilidade, e não de relações
públicas. Contratei-a na hora. Num processo clássico de seleção, ela não
passaria da primeira etapa.
ISTO É - Há um script estabelecido?
Shinyashiki - Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um Presidente de
multinacional no programa O aprendiz? "Qual é seu defeito?" Todos respondem
que o defeito é não pensar na vida pessoal: Eu mergulho de cabeça na
empresa. Preciso aprender a relaxar". É exatamente o que o Chefe quer
escutar. Por que você acha que nunca alguém respondeu ser desorganizado ou
esquecido? É contratado quem é bom em conversar, em fingir. Da mesma forma,
na maioria das vezes, são promovidos aqueles que fazem o jogo do poder. O
vice-presidente de uma das maiores empresas do planeta me disse: "Sabe,
Roberto, ninguém chega à vice-presidência sem mentir". Isso significa que
quem fala a verdade não chega a diretor?
ISTO É - Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal preparadas?
Shinyashiki - Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a humildade de se
preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o fim e não se
preocupam com o conhecimento. Muitas equipes precisam de motivação, mas o
maior problema no Brasil é competência. Cuidado com os burros motivados. Há
muita gente motivada fazendo besteira. Não adianta você assumir uma função
para a qual não está preparado. Fui cirurgião e me orgulho de nunca um
paciente ter morrido na minha mão. Mas tenho a humildade de reconhecer Que
isso nunca aconteceu graças a meus chefes, que foram sábios em não me dar um
caso para o qual eu não estava preparado. Hoje, o garoto sai da faculdade
achando que sabe fazer uma neurocirurgia. O Brasil se tornou incompetente e
não acordou para isso.
ISTO É - Está sobrando auto-estima?
Shinyashiki - Falta às pessoas a verdadeira auto-estima. Se eu preciso que
os outros digam que sou o melhor, minha auto-estima está baixa. Antes, o ter
conseguia substituir o ser. O cara mal-educado dava uma gorjeta alta para
conquistar o respeito do garçom. Hoje, como as pessoas não conseguem nem ser
nem ter, o objetivo de vida se tornou parecer. As pessoas parece que sabem,
parece que fazem, parece que acreditam. E poucos são humildes para confessar
que não sabem. Há muitas mulheres solitárias no Brasil que preferem dizer
que é melhor assim. Embora a auto-estima esteja baixa, fazem pose de que
está tudo bem.
ISTO É - Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos perfeitos
em tudo e de valorizar a aparência?
Shinyashiki - Isso vem do vazio que sentimos. A gente continua valorizando
os heróis. Quem vai salvar o Brasil? O Lula. Quem vai salvar o time? O
técnico. Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta. O problema é que eles
não vão salvar nada! Tive um professor de filosofia que dizia: "Quando você
quiser entender a essência do ser humano, imagine a rainha Elizabeth com uma
crise de diarréia durante um jantar no Palácio de Buckingham". Pode parecer
incrível, mas a rainha Elizabeth também tem diarréia. Ela certamente já teve
dor de dente, já chorou de tristeza, já fez coisas que não deram certo. A
gente tem de parar de procurar super-heróis. Porque se o super-herói não
segura a onda, todo mundo o considera um fracassado.
ISTO É - O conceito muda quando a expectativa não se comprova?
Shinyashiki - Exatamente. A gente não é super-herói nem superfracassado. A
gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de tristeza. Não há nada de
errado nisso. Hoje, as pessoas estão questionando o Lula em parte porque
acreditavam que ele fosse mudar suas vidas e se decepcionaram. A crise será
positiva se elas entenderem que a responsabilidade pela própria vida é
delas.
ISTO É - Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto Shinyashiki dizer
essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem defeitos?
Shinyashiki - Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas aceitá-las faz
minha vida fluir facilmente. Há várias coisas que eu queria e não consegui.
Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos). Meu filho mais velho
nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos. Com uma criança especial,
eu aprendi que ou eu a amo do jeito que ela é ou vou massacrá-la o resto da
vida para ser o filho que eu gostaria que fosse.
Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram certo. O resto
foram apostas e erros. Dia desses apostei na edição de um livro que não deu
certo. Um amigão me perguntou: "Quem decidiu publicar esse livro?" Eu
respondi que tinha sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.
ISTO É - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da aparência?
Shinyashiki - O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as pessoas
cederem a essa tirania e tentar evitá-las. São três fraquezas.. A primeira é
precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir amada e a terceira é
buscar segurança. Os Beatles foram recusados por gravadoras e nem por isso
desistiram. Hoje, o erro das escolas de música é definir o estilo do aluno.
Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou o Keith Richards. Os
MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem covers do Bill Gates. O
que as escolas deveriam fazer é ajudar o aluno a desenvolver suas próprias
potencialidades.
ISTO É - Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?
Shinyashiki - A sociedade quer definir o que é certo. São quatro Loucuras da
sociedade. A primeira é instituir que todos têm de ter sucesso, como se ele
não tivesse significados individuais. A segunda loucura é: Você tem de estar
feliz todos os dias. A terceira é: Você tem que comprar tudo o que puder. O
resultado é esse consumismo absurdo. Por fim, a quarta loucura: Você tem de
fazer as coisas do jeito certo. Jeito certo não existe. Não há um caminho
único para se fazer as coisas. As metas são interessantes para o sucesso,
mas não para a felicidade. Felicidade não é uma meta, mas um estado de
espírito. Tem gente que diz que não será feliz enquanto não casar, enquanto
outros se dizem infelizes justamente por causa do casamento. Você pode ser
feliz tomando sorvete, ficando em casa com a família ou amigos verdadeiros,
levando os filhos para brincar ou indo a praia ou ao cinema. Quando era
recém-formado em São Paulo, trabalhei em um hospital de pacientes terminais.
Todos os dias morriam nove ou dez pacientes. Eu sempre procurei conversar
com eles na hora da morte. A maior parte pega o médico pela camisa e diz:
"Doutor, não me deixe morrer. Eu me sacrifiquei a vida inteira, agora eu
quero aproveitá-la e ser feliz". Eu sentia uma dor enorme por não poder
fazer nada. Ali eu aprendi que a felicidade é feita de coisas pequenas.
Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro
em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado muito tempo ou perdido várias
oportunidades para aproveitar a vida.